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Presidente ou Presidenta? |
Uma das dúvidas de português que mais parece assolar os brasileiros (e por conseguinte, uma das coisas que mais me perguntam) refere-se ao uso de "presidente" ou "presidenta". Qual das duas formas está correta? Resposta curta: as duas formas estão corretas. Resposta longa? Respire fundo e continue lendo.
Para responder de forma satisfatória, a primeira coisa que devemos fazer é saber de onde veio a palavra. O português é um desenvolvimento do latim, e é deste idioma que vem "presidente". Em latim, praesidens/praesidentis é o particípio presente do verbo "praesidere". Repitamos: um particípio. Daí ter vindo para o português também na mesma forma participial. Assim, cumpre dizer que o adjetivo masculino em latim é presidentum; o particípio é praesidens, praesidentis (a primeira forma é a do nominativo; a segunda, do genitivo). Foi essa última forma que veio ao português (se tivéssemos herdado a forma adjetiva, teríamos "presidento", e não "presidente").
Vale notar também que o particípio presente latino tem o poder de transformar verbos ativos em adjetivos. Por exemplo, se tomarmos o verbo "laudare" (laudar, em português) e aplicarmos o particípio presente, ele se transformará em "laudans, laudantis" (aquele que lauda: laudante). Essa fórmula do particípio em latim desaguou nas formas portuguesas "-ante" (mendicante), "-ente" (presidente), "-inte" (contribuinte) e "-unte" (transeunte). São formas comuns a basicamente todos os idiomas que provieram do latim, como é caso (além do português) do espanhol, do italiano e do francês (chamadas de línguas neolatinas). O interessante é que, no latim, essa forma de particípio presente atuando sobre um verbo ativo simplesmente não muda. Seja masculino, feminino ou neutro (o latim tinha três gêneros, ao contrário do português, que só tem dois). Isso se reflete mais ou menos numa outra fórmula: de modo geral, palavras terminadas em "-e" são "neutras", no sentido de que podem ser masculinas ou femininas, dependendo do uso dos falantes em determinada época.
Por exemplo, em alguns casos, palavras terminadas em "-e" podem adotar os dois gêneros no mesmo idioma: "o paciente, a paciente"; "o estudante, a estudante". Em outros casos, um idioma adota um gênero específico, e outro idioma (também neolatino) inventa de adotar o gênero oposto. É o caso de "o leite" (masculino) em português e "la leche" (feminino) em espanhol. É prova de que palavras terminadas em "-e" podem cair para qualquer lado (masculino ou feminino). A escolha é mais ou menos arbitrária, dependendo do uso por uma dada população com o passar do tempo (e a escolha termina se solidificando num determinado idioma). Em português, palavras com as terminações "ante", "ente" etc., por virem de uma forma em particípio do latim, permaneceram na mesma estrutura de particípio em português (sendo que o particípio presente não muda sua forma conforme o gênero). E como essas formas de particípio atuam sobre verbos ativos, formando adjetivos e substantivos, alguns chamam esta estrutura de "particípio ativo". Assim, o verbo "amar" tem a forma participial ativa "amante"; o verbo "crer" tem a forma participial ativa "crente"; o verbo "constituir" tem a forma "constituinte". Perceba que todas essas formas levam a forma masculina e feminina iguais: o amante, a amante; o crente, a crente; o constituinte, a constituinte.
De forma resumida, isso significa que, sendo formas de particípio (ante, ente, inte) terminadas em "e", a forma no português, assim como no latim, é imutável, valendo para palavras tanto no masculino quanto no feminino. Por isto eu particularmente defendo o uso de "presidente", independentemente do sexo de quem preside.
Abaixo, algumas das perguntas mais frequentes sobre o tema.
Pergunta 1: Mas eu já ouvi várias pessoas dizendo que assim como "doutor", "juiz" e "professor" admitem as formas femininas "doutora", "juíza" e "professora", também deveríamos adotar "presidenta". Não seria discriminação adotar só a forma "presidente"? Afinal, dizemos "brasileiro" e "brasileira".
Não. Veja que de todas as formas citadas ("doutor", "juiz", "professor"), nenhuma delas possui a terminação na forma de particípio "ante", "ente" etc. (e o mesmo acontece com "brasileiro" e brasileira"). São todas formas de puro adjetivo ou substantivo - e não de particípio, portanto não se confundem. Ora, também no latim essas profissões citadas acima podem ir para o feminino. O que não se pode é passar a forma terminada em "ente" para "enta", pois isto não existe, nem em latim, nem em português. Ou melhor, não deveria.
Pergunta 2: Eu já vi exemplos com "o chefe" e "a chefa".
Eu também. Mas veja que mesmo neste exemplo, em que "chefe" termina em "-e" (e, portanto, a palavra, por sua própria natureza, já deveria contemplar os dois gêneros), ainda não estamos tratando de uma terminação em particípio (que, neste caso, seria "chefiante"). Assim, "chefe" e "presidente" ainda não podem ser comparados (pois um tem forma de adjetivo, e o outro term forma de particípio), apesar de que, como já dito, "chefe" já traz em si mesmo a possibilidade do uso de dois gêneros. Alguém diria "chefianta"? "A chefianta é muito confianta"?
Pergunta 3: Mas eu já cansei de ver "cruenta". Deveria ser "cruente", então?
Não, porque "cruento" não é um particípio. A palavra vem do latim "cruentus" no masculino (cruenta no feminino, cruentum no neutro). Ou seja, a palavra é um adjetivo, e não um particípio. A confusão acontece porque as formas se parecem (da mesma forma que caro e calo em português se parecem muito para o falante nativo de chinês ou japonês). Mas é só como Denorex: parece, mas não é.
Pergunta 4: Por que então dizemos "elefanta"?
Porque "elefante" não é uma palavra latina. É grega: ελέφας, ελέφαντος, (elephas no nominativo; eléphantos no genitivo, que foi a forma herdada). Sendo um substantivo grego, não se confunde com a regra para "presidente", pois esta última refere-se ao caso de particípio do latim. Vale lembrar que a forma feminina "aliá" também está correta. E cabe mencionar que a palavra "elefoa", apesar de ainda muito usada, não é aceita por nenhum dicionário nem gramático de peso.
Pergunta 5: Como você explica a Lei nº 2.749, de 2 de abril de 1956?
Como essa lei é bem pequena, vou me dar ao luxo de transcrevê-la aqui na íntegra (mas o artigo mais importante é o primeiro):
LEI Nº 2.749, DE 2 DE ABRIL DE 1956
Dá norma ao gênero dos nomes designativos das funções públicas
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art 1º. Será invariavelmente observada a seguinte norma no emprego oficial de nome designativo de cargo público:
"O gênero gramatical desse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consagrados na lexeologia do idioma. Devem portanto, acompanhá-lo neste particular, se forem genericamente variáveis, assumindo, conforme o caso, eleição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões pronominais sintaticamente relacionadas com o dito nome".
Art 2º. A regra acima exposta destina-se por natureza as repartições da União Federal, sendo extensiva às autarquias e a todo serviço cuja manutenção dependa, totalmente ou em parte, do Tesouro Nacional.
Art 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 2 de abril de 1956; 135º da Independência e 68º da República.
JUSCELINO KUBITSCHEK
Nereu Ramos
Essa lei é geralmente apontada pelos defensores da forma "presidenta" como razão indiscutível de sua validade. Porém, isto não chega a ser mais do que uma tentativa vã. Como já tenho lá certa intimidade com as leis e a hermenêutica, haja vista meus vários (e sofridos) anos de faculdade de Direito, a Lei 2.749/56 teve um escopo diferente do que lhe tentam imputar hoje em dia, e que explico agora.
Em português, a formação dos gêneros é realizada da seguinte forma: "o masculino é o termo não marcado; o feminino, o termo marcado". Como assim? Isso quer dizer que, geralmente, a forma "padrão" (não flexionada) do português é a que está no masculino; a forma flexionada, a que está no feminino. Ou seja, quando se vai ao dicionário buscar um adjetivo ou nome, é necessário procurá-lo no masculino, pois esta é a forma padrão, "default". E o que isto representa para o legislador e para os nomes dos cargos públicos? Basicamente que eles sempre serão listados no masculino. A conseqüência disso é que corre-se o risco de imaginar que no serviço público existiriam apenas
procuradores,
auditores,
consultores,
capitães,
médicos,
advogados,
juízes etc., sempre no masculino (sendo que existem também
procuradoras,
auditoras,
capitãs,
médicas,
advogadas,
juízas). Daí a Lei nº 2.749/56 determinar que o gênero gramatical do nome do cargo deva acompanhar o sexo do funcionário a quem se refira. Ou seja, o objetivo é fazer menção aos gêneros feminino e masculino, para evitar a discriminação. Assim, quando determinada mulher exercer o cargo de juiz, lei ou regulamento que porventura disponha sobre ela, deverá conter a palavra no feminino: "juíza", e não "juiz".
Perceba que a lei não cria a palavra "presidenta", nem defende seu uso. Ela simplesmente diz que para as palavras que
aceitem a forma feminina sejam usadas essas formas (femininas) quando se fizer referência a mulheres em cargos públicos. É o caso de todas as palavras acima, que são de formação adjetiva ou substantiva, e não de particípio. Auditor, advogado, juiz, médico (etc.) não possuem terminação "ante", "ente" etc. Por isso, admitem a forma feminina. "Presidente" não se inclui na lista, e portanto não estaria abarcado pela lei. Em outras palavras, não foi a
vontade do legislador (interpretação teleológica da lei) dizer que "presidenta" existe e deve ser usada. De fato, perceba que a lei é clara quando diz: "Devem portanto, acompanhá-lo neste particular,
se forem genericamente variáveis". "Presidente", por ser uma forma de particípio ativo terminada em "-e", não é variável; portanto, não se deve flexionar. Assim, manter o vocábulo "presidente", rejeitando "presidenta", está em total conformidade com a lei.
Pergunta 6: Que saco! "Presidente" é um machismo e ponto final. A palavra "presidenta" deve ser sempre usada quando se tratar de pessoa do sexo feminino.
Na verdade, é o contrário. Por isso é que gastei tanto tempo explicando a origem da palavra e corri o risco de fazer você, leitor, perder a paciência quando discorri sobre adjetivos, particípios e outras baboseiras gramaticais. O fato é que "presidente" já é, precisamente, a fórmula mais neutra e politicamente correta que existe. "Presidente" não é machismo. Não pode ser, porque se fosse, a palavra em português seria "presidento". Neste caso, até eu mesmo defenderia que a forma feminina deveria ser "presidenta" (pois essa forma é adjetiva, e exige o feminino terminado em "-a"). Mas não é, porque quem preside leva uma forma de particípio (presidente), e não de adjetivo (presidento/a). Daí eu ter explicado que formas terminadas em "-e" no português são, por natureza, neutras. Elas podem ser usadas tanto para o masculino quanto para o feminino. E melhor: não possuem marca de nenhum deles. Em português, a forma do masculino é feita com o "o" final (brasileirO); a forma feminina, com o "a" final (brasileirA). "Presidente" termina em "e", e não tem forma nem de masculino nem de feminino (justamente por possuir uma forma de particípio), e portanto é, por si só, a forma já mais politicamente correta que poderiam inventar. De fato, se só tivéssemos as palavras "presidento" e "presidenta" em português, aposto que alguém inventaria "presidente" só para soar mais neutro. Mas já temos justamente esta palavra, e no entanto insistem em não usá-la. Será que teremos que dizer agora "a marinha mercanta"?
Pergunta 7: Então "presidenta" realmente está errado?
Não. Deveria estar. Levando-se em consideração todas as regras não só do português, mas de sua língua-mãe, o latim, "presidenta" é um absurdo morfológico que não poderia existir. E no entanto, existe. Existe porque as pessoas falam a palavra. E a língua, apesar de ser regida por normas gramaticais, no final das contas, ainda é determinada pela boca do falante. Os idiomas não podem ser presos por livros de gramática, nem pelos próprios gramáticos, nem por quem acha que deveria ser de um jeito, enquanto é de outro. A língua está viva!, e seu uso termina por moldá-la; e de tanto insistirem numa forma que não existia (presidenta), ela terminou se integrando ao léxico (mesmo nunca havendo existido barbaridades como comedianta, cartomanta, aspiranta). Consequentemente, essa forma já é aceita oficialmente pelos gramáticos Celso Cunha, Evanildo Bechara e Luís Antônio Sacconi. Os dicionários Aulete, Houaiss, e mesmo o tradicional Aurélio já trazem o verbete em suas páginas. Até mesmo o último reduto da mais fervorosa tradição gramatical, o erudito Domingos Paschoal Cegalla, já admite que “presidenta é forma correta e dicionarizada, ao lado de presidente". De modos que, hoje, ambas as formas estão corretas, e tudo fica, mesmo, a gosto do freguês.
Entretanto, não posso deixar de pensar que o mais triste da situação é que muitos defenderam o uso de "presidenta" por achar que "presidente" seria um machismo, mas o efeito obtido foi exatamente o contrário, malgrado essas mesmas pessoas não conseguirem enxergar as consequências. Adotaram uma forma racista (exclusivamente feminina, pois não existe no português a forma "presidento"), quando já dispunham de termo mais neutro e justo. Mas é como dizem: o povo tem o governo que merece. Neste mesmo diapasão, eu, do ofício da linguagem, vejo-me obrigado a admitir: o povo tem a língua que merece.